Introdução

Como citar (norma Chicago):
Soares, Francisco. “Introdução.” Kicola: livros e leitores em Angola no século XIX. Editado por FS. FS. 2020. https://kicola.xn--svisto-bxa.com/p/introducao.html (acedido em 28 de jul de 2022)





Continua a desgraçada falta de notícias de Lisboa não aparecendo hum só Navio com bandeira Portugueza: veem de toda parte, menos de Portugal, de maneira que por similhante falta e pelo abandono em que teem este Reino, ninguém poderá dizer que hé pertença de Portugal. 
(carta particular de um degredado português, bacharel em Leis, datada de agosto de 1827 – o ano de nascimento de José da Silva Maia Ferreira (Pacheco, 2000 p. 31)).


Foi, portanto, por meio de empréstimos ininterruptos que nos formamos, definimos a nossa diferença relativa e conquistamos consciência própria. Os mecanismos de adaptação, as maneiras pelas quais as influências foram definidas e incorporadas é que constituem a “originalidade”, que no caso é a maneira de incluir em contexto novo os elementos que vêm de outro.
(Candido, 2002 p. 101) 





O que se apresenta a seguir é fruto de uma investigação, entrecortada mas longa com mais de vinte anos, que mesmo assim continua. É uma investigação interminável, mas com recortes definidos, um rio muito largo, mas de margens assinaláveis. De algumas delas dou conta neste livro. De outras os leitores darão conta na continuação.

Estudando a fundo, como tenho feito, a literatura angolana do século XIX, apercebi-me de que ela supunha um leque de leituras rico e variado. No entanto, o lugar-comum sobre a época é o de uma terra inculta, bárbara, onde não chegavam as luzes da civilização escrita, na qual nada se lia.

Ao comparar detalhadamente recorrências e exceções estróficas, rítmicas e rímicas nas líricas de Angola, Brasil e Portugal ao longo do século romântico (Soares, 2012), pude fixar algumas destas leituras ‘invisíveis’. E fiquei a desconfiar de que havia muitas mais.

A partir daí pesquisei as bibliotecas e os arquivos que pude, em Angola e fora de Angola, no sentido de fazer uma imagem minimamente justa, afinada, sobre as nossas leituras nesse tempo. De passagem, para testar a sua importância, fui verificando algumas intertextualizações possíveis entre a bibliografia investigada e a bibliografia produzida por nós. Também os nossos poemas desse tempo exigiam já uma leitura relacional que permitisse articulá-los, não só com problemáticas locais, ainda com a circulação bibliográfica no século XIX, cada vez mais intensa.

Com apoios intermitentes de várias instituições portuguesas (Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para a Ciência e Tecnologia, Fundação Luso-brasileira para o desenvolvimento do mundo de língua portuguesa, Universidade de Évora), com muito sacrifício pessoal e apoio de alguns (algumas) amigos(as) e colegas, pude fazer consultas nas seguintes bibliotecas e nos seguintes arquivos: Bibliotecas Nacionais de Lisboa e do Rio de Janeiro; Biblioteca Estadual Presidente Castelo Branco (antiga Biblioteca Pública de Pernambuco); Biblioteca da Fundação Joaquim Nabuco (Recife); Arquivo Público Estadual de Pernambuco; Arquivo Histórico Nacional de Angola (consulta limitada); Biblioteca do Governo Provincial de Luanda (antiga Biblioteca da Câmara Municipal de Luanda); Bibliotecas Municipais de Benguela e de Évora; Hemeroteca Municipal de Lisboa; Arquivo antigo do Tribunal Provincial de BenguelaBiblioteca Rio-Grandense.

Não deixei de levar em conta fontes alternativas. Entre as fontes alternativas encontrei referências e citações em textos escritos e publicados em jornais e livros. Porém, sabemos o quanto isso é relativo: qualquer um pode citar um livro que não leu – seja para apenas sugerir que conhece os autores canónicos; seja porque apenas achou graça àquela frase, que se apropriava bem, mas não chegou a ler o livro; seja por terceiros motivos. Segundo argumento: cada um pode não citar um livro decisivo, estruturante, seja pela angústia da influência, seja por outras razões. É ver o caso de Maia Ferreira. Comparando o número de poetas que usa em epígrafes com o cálculo do que teria lido nos anos da sua formação pessoal, incluindo quando começou a escrever e a publicar, é de postular que leu muito mais do que citou e, possivelmente, nem todos os que cita foram lidos ou tiveram um livro seu lido pelo autor. Pesquisando as intertextualizações implícitas nos seus versos – e que, em boa parte, os esclarecem – podemos fazer uma ideia mais precisa do que leu.

Ora, o que Maia Ferreira leu, como de forma geral a pequena comunidade literária angolense da primeira metade do século XIX, é largamente tributário do mercado bibliográfico brasileiro seu contemporâneo. Também nisso, acompanhava as rotas do tráfico de escravos… e a constituição do planeta tal como dele desfrutamos hoje: correntes marinhas e ventos tornavam mais curtas as viagens de Lisboa para o Rio de Janeiro que de Lisboa para Luanda. Isso condicionou, desde Pedro Álvares Cabral, as relações entre Portugal e Angola às relações entre Portugal e Brasil - o que, por sua vez, assentou o desenvolvimento económico dessas relações no triângulo geograficamente condicionado por tais correntes e ventos. Na minúscula parte que me diz respeito, fui levado a centrar a minha pesquisa, principalmente, em relações literárias e bibliográficas que passavam pelas viagens entre portos brasileiros e angolanos.

Em busca do que teria sido lido no século XIX em Angola, quer em fontes pernambucanas, quer na bibliografia sobre o que circulava no Rio de Janeiro e em Portugal, quer nas fontes angolanas, um dos aspetos mais difíceis de resolver prendeu-se com a menção às obras e autores. Tal como outros investigadores referem, a propósito de fontes diferentes, encontrei nomes de autor errados ou lacunares, títulos igualmente errados ou lacunares, e muitas vezes não encontrei referências a datas ou locais de publicação, muito menos a editoras ou tipografias, algumas ocorrências nem mesmo o nome do autor ou do livro indicavam. O mercado livreiro pernambucano, por exemplo, vivia nesse tempo, sobretudo, dos estudantes do Curso Jurídico e às vezes a referência era extremamente lacónica, apenas o suficiente para o interessado identificar o alvo na gíria estudantil. 

Após a recolha local dos dados foi, portanto, necessário recorrer a cerca de uma dezena de ficheiros de bibliotecas europeias e americanas, o que se conseguiu através da Internet, bem como recorrer aos ficheiros da Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro e da Biblioteca Nacional de Lisboa em particular. Um trabalho demorado, às vezes penoso e cheio de armadilhas. Tendo aproximado as datas de publicação de um anúncio, ou qualquer outra caraterística nele mencionada, com as informações dos catálogos das bibliotecas e, quando possível, vendo os exemplares, era preciso ainda ler o livro, muitas vezes desconhecido para mim, pois só lendo-o se pode compreender as marcas que terá deixado na produção cultural e poética de Angola. Foram vários os casos em que não consegui identificar a obra e o autor. Esses títulos, naturalmente, não vão referidos no presente estudo.

Também por isso, a consulta bibliográfica e em linha foi de fundamental importância para cobrir o mercado carioca (mas também o paulista e o baiano, este muito menos pesquisado por mim). Tendo ele sido investigado por muita gente, não faria sentido repetir as investigações alheias – o que me poupou despesa e tempo. Refiro-me à consulta de bibliografia sobre, precisamente, a circulação de livros nestes espaços. O mesmo vale para a bibliografia portuguesa e a circulação de livros em Portugal no século XIX. Foi fundamental encontrar o trabalho feito, mesmo porque me dava pistas sobre onde investigar mais e foi muito importante que estivesse disponibilizado em linha. O confronto com os catálogos existentes, em linha também, dava-me a prova ‘experimental’ do que tirava de outros autores.

É, no entanto, necessário ler atentamente, com muita cautela e atenção, quer este livro, quer os que fui consultando sobre leituras no século XIX. Os investigadores não podem conhecer todas as obras que circulavam e, portanto, não conhecem todas as fronteiras, os vasos comunicantes, ou os contornos precisos da circulação bibliográfica. No meu caso particular, li e reli todas as obras (relacionadas com literatura, mesmo que em sentido lato) que pudessem ter sido consultadas, por escritores angolanos, no século XIX. Comecei por aquelas que apareciam nas fontes angolanas e depois fui alargando às que se repetiam nas outras fontes. Iniciando a leitura, aprofundava as que me parecessem significativas para a produção literária angolense, ou para os leitores imediatos (incluídas aí leitoras – um segmento rendoso do público imediato).

Não me preocupei só em listar os títulos a que tiveram acesso, também me interessei pela história e estado do exemplar, pelas eventuais anotações, pelos conteúdos veiculados, pelas estruturas em jogo, por tudo o que me indicasse, quer a recepção e uso do livro, quer as intertextualizações que teria provocado. Mas é óbvio que não consegui ver tudo, nem saber quais os títulos todos que foram lidos, nem descortinar sempre as intertextualizações.

Este esforço de leitura pressupôs um termo de comparação para as obras que via mencionadas. Não podendo dedicar-me a todas as peças angolanas publicadas no século XIX, incluindo muitos pequenos e despretensiosos textos, centrei-me nos três autores publicados em livro e nos poemas do Almanach de lembranças. Dos autores publicados em livro, limitei-me a obras líricas em verso. A principal razão por que o fiz foi que não conseguia memorizar com suficiente pormenor as passagens de Nga mutúri, Scenas d’África e Juca, a matumbola (que, embora escrita por um português que esteve poucos anos entre nós, integrou na altura a nossa pequena rede de conexões literárias locais e estabeleceu com uma das nossas oraturas um liame precursor). Os poemas líricos, por inclinação pessoal e pela sua mais curta extensão, foram-me mais fáceis de memorizar e de comparar. Alguém virá, depois de realizado este trabalho, completá-lo analisando as intertextualizações possíveis entre as obras lidas e as narrativas publicadas entre nós, aliás escassas em livro. A tarefa está muito mais facilitada ainda por ter eu consultado uma parte da bibliografia lida por Alfredo Troni, ou que pelo menos integrava a sua biblioteca.

Outro limite diz respeito à diferença entre livros anunciados em jornais e livros lidos pelos autores. Parcialmente, consegui colmatá-la. Uma vez que os autores recorriam também a livros fora do circuito comercial e que tais livros também são importantes para a sua produção, tendo eventualmente chegado a uma parte do público, sempre que li referências bibliográficas nas obras dos autores angolenses consultei listas de títulos propriedade de leitores locais conhecidos, pois me serviam de contraponto para prever ou comparar as bibliotecas de escritores angolenses ou residentes. A comparação sustentava-se, em primeiro lugar, no acervo da Biblioteca do Governo Provincial de Luanda, por haver lá muitas obras assinadas por duas figuras importantes na comunidade urbana dessa época, apesar de portugueses originalmente: o já referido Alfredo Troni, ficcionista em prosa e director do Jornal de Loanda, e Joaquim Eugénio de Salles Ferreira, professor, figura de destaque na pequena elite comercial e intelectual de Luanda, irmão de um homem proeminente na sociedade colonial, F. de Salles Ferreira. Os outros títulos para comparação vinham dos inventários orfanológicos, acima de tudo os que revelavam a existência de bibliotecas significativas para o meio – seja pela sua extensão, seja pela posição social dos detentores.


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Para prosseguirmos, observemos a transcrição da ficha abaixo:








Conjunto documental: Minutas de avisos e ofícios. 1ª Seção
Notação: IJJ¹ 43
Datas-limite: 1808-1820
Título do fundo ou coleção: Série Interior
Código do fundo: A6
Argumento de pesquisa: Benguela
Ementa: Aviso de d. Fernando José de Portugal e Castro, marquês de Aguiar, para Antônio Joaquim da Costa Carvalho, barão de São Lourenço, informando sobre o requerimento do mestre da corveta Carolina a respeito do pagamento das passagens dos alunos que vieram de Benguela para estudar cirurgia e farmácia no Hospital Real Militar da Bahia.
Data do documento: 21 de abril de 1812
Local: Rio de Janeiro
Folha(s): 125v


Alguns leitores, esquecendo que estes estudos são sempre comparativos, podem estranhar que tenha pesquisado em bibliotecas brasileiras mais que nas portuguesas, em vez de investigar só nas angolanas, ou nas angolanas e nas portuguesas. As bibliotecas brasileiras e portuguesas nos dão sinais dos dois principais mercados livreiros onde leitores e escritores angolanos se abasteciam. A julgar pelos exemplares assinados existentes na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda, como pela análise dos inventários de órfãos de Benguela, alguns deles importavam diretamente livros de outros países europeus, mas as fontes habituais eram as portuguesas e as brasileiras. As compras no Brasil, acompanhando o movimento dos navios, apareciam em muito maior número durante a primeira metade do século. A circulação de livros no Brasil, por essa intensidade no comércio marítimo entre as duas margens do Atlântico, delineava um quadro de leituras mais próximo do nosso. De resto, os exemplares da antiga Biblioteca Municipal de Luanda me serviam só para o último quartel do século XIX, período em que as fontes angolanas eram suficientes. Antes de 1875 as informações tinham de ser buscadas no Brasil e em Portugal para, por aproximação, calcularmos o que podia ter chegado a circular em Angola. 

Não se estranhe a destacada colocação do Brasil, aqui. Era, na verdade e sobretudo nas décadas iniciais do século XIX, um mercado mais importante que o português, mais frequentado pelos angolenses e residentes e, sobre essas relações, conhecemos hoje bem menos. Ainda vendo as "Notícias marítimas" do jornal O Português, onde Almeida Garrett trabalhou, reparamos que é raríssima a notícia de uma embarcação vinda de ou para Luanda ou Benguela. O comércio marítimo era mais intenso com o Brasil e, mesmo, com a Inglaterra. Se espreitarmos os jornais brasileiros a partir do ano seguinte, encontramos muitas referências a idas e vindas de navios de e para Luanda e Benguela. Quer dizer que esse 'triângulo luso-atlântico' de que falou Mário António não era uma invenção lusotropicalista, mas uma realidade comercial. Os produtos iam do Brasil para Portugal e de Portugal para o Brasil; do Brasil iam para Angola e de Angola para o Brasil ou para Portugal. Um quadro geral do ano de 1832, por exemplo, nos diz que, dos 18 navios oficialmente entrados no porto de Luanda, “14 eram procedentes do Rio de Janeiro, Pernambuco e Baía e só os outros 4 vieram de Lisboa” (Roseira, 1966 p. 24). O comércio dos livros e do saber (incluindo a instrução) compreensivelmente seguiria as rotas das restantes mercadorias e serviços. 

O Brasil foi desde sempre – mas principalmente entre o fim do período holandês e até mais ou menos o meio do século liberal – um lugar privilegiado para intercâmbios comerciais, uma fonte de quadros para Angola, um destino de férias, um refúgio para tratamentos e local de estudo para os filhos da nascente burguesia angolana (que é uma fénix: está sempre a renascer e já era assim nesse tempo). Uma consulta em linha à listagem de documentos coloniais do Arquivo Nacional brasileiro dá rapidamente ao leitor acesso a esse contexto. E muitos outros indícios: a lista de Governadores, médicos, militares, padres oriundos do Brasil e atuando em Angola; a constância, nas nossas fontes, de livros como o Código comercial brasileiro, O conselheiro fiel do povo e outras coletâneas jurídicas, comentadas ou não, que aparecem no espólio mais antigo estudado (Benguela, 1855) e são relativas apenas à legislação brasileira; as referências diversas a alunos e comerciantes que iam frequentemente ao Brasil estudar e negociar; as referências constantes à partida e chegada de navios oriundos de Angola nos portos do Rio de Janeiro e do Recife (os que estudei); a circulação, nos nossos pequenos burgos, de bibliografia impressa no Brasil e principalmente no Rio de Janeiro, incluindo-se nela os periódicos; a circulação constante de portugueses entre o Brasil e Angola, muitos deles durante décadas não chegando sequer a visitar Portugal (e terá sido o caso de António Félix Machado, pai de Pedro Félix Machado); a persistência, no meio de nós, de laços familiares entre nacionais e residentes no nosso território e no do Brasil, com ramificações, em ambos os casos (João Cândido Furtado, por exemplo, que nunca esteve no Brasil e viveu oito anos em Angola, mas havia parentela sua muito bem colocada na corte carioca e familiares mais antigos na colónia de Sacramento)... Não esgoto com a listagem todos os factos em meu socorro passíveis de citação, mas estes bastam, por enquanto.

Como escrevi, a intensa movimentação marítima, comercial e bibliográfica, no que diz respeito ao último aspeto encontra-se por estudar, ao passo que as relações económicas e bibliográficas possíveis entre Angola e Portugal estão mais estudadas. É por isso também que me centro agora, principalmente, nessa linha comercial que ligava o Brasil a Luanda e Benguela.

É claro que, no Brasil, ocupava lugar de destaque o Rio de Janeiro. Em 1798, por exemplo, o governador de Benguela declarou que era comum o envio de filhos e filhas de negociantes para estudar na capital carioca. Sobretudo depois da Corte portuguesa ali se instalar, mas também antes, os angolanos estavam muito mais próximos do Rio de Janeiro do que hoje pensamos e do que hoje estamos. Dados citados por Helena Wakim Moreno dizem-nos que, entre 1811 e 1830, 79% dos navios negreiros que chegavam ao Rio de Janeiro vinham de Angola (Moreno, 2014 p. 44). Em anúncios do Jornal do comércio vemos referências constantes a bilhetes de Loteria comprados por angolenses e residentes, por interposta pessoa, na capital do Império (brasileiro), depois do Decr. de 28-8-1829. Num dos anúncios a Loteria fazia-se “para sustentação dos Expetaculos do Imperial Teatro de S. Pedro” e (outra) para as obras da Igreja do “SS. Sacramento da antiga Sé, desta Corte”. Repare-se no envolvimento social que pode implicar essa compra. Ficava bem, sem dúvida, alguém entrar numa Loteria benemérita e, mais ainda, para beneficiar a Arte e a Religião. Mas, se o negociante benguelense em causa não fosse ao Rio de Janeiro frequentemente e se não tivesse negócios importantes ali, ia jogar lá na Loteria? Só para ir lá receber o prémio caso ganhasse? Usaria uma relação de confiança no Rio de Janeiro só para comprar um bilhete de Loteria? Como podia surgir essa relação de confiança fora de relações comerciais e familiares?

Além do Rio de Janeiro, Salvador e Recife eram também destinos fortes. Relativamente à Bahia, releia-se a referência acima, disponibilizada pelo Arquivo Nacional brasileiro. Um factor que terá incrementado a presença de angolanos em Salvador foi, sem dúvida, a criação da Faculdade de Medicina – que, no entanto, havia no Rio de Janeiro também. A diferença de Salvador, em relação aos restantes portos, está numa inflexão que levou a que os navios negociando escravos, principalmente após a proibição do tráfico transatlântico, passassem a dirigir-se mais ao golfo da Guiné – razão pela qual há mais traços culturais dessa zona de África presentes hoje no folclore de Salvador do que em qualquer outro antigo porto negreiro do Brasil. A percentagem de navios negreiros oriundos de Angola a desembarcar em Salvador é muito menor do que a dos que desembarcavam no Recife e no Rio de Janeiro. Ainda assim, não tendo tido acesso direto a fontes estritamente sobre bibliografia em Salvador, reconheço que faz falta consultá-las também, mesmo que eu procurasse por cidades com ensino superior ligado às Ciências Humanas para encontrar bibliografia também mais ligada às Ciências Humanas. Ou seja: Estudos Jurídicos como os de Olinda-Recife e de São Paulo – São Paulo para onde, pelos contactos feitos por mim, percebi que iriam raramente angolanos – aliás, dos arquivos da Faculdade de Direito hoje na USP não me indicaram a frequência desse Curso por algum aluno angolano durante a primeira metade do século XIX.

Sendo os mercados bibliográficos baiano, carioca, paulista e recifense muito marcados pelos ‘estudos’ que ali se faziam, não havendo notícia de angolanos em São Paulo, restavam-me dois alvos primordiais: Rio de Janeiro (onde o mercado excedia largamente o dos ‘estudos’) e Recife (onde igualmente os leitores angolenses podiam ser também negociantes, capitães de navios, funcionários superiores, negreiros como Arsénio de Carpo e D.ª Ana Joaquina).

São Paulo vem a ganhar importância já numa época de recuo neste convívio angolano-brasileiro. Apesar disso, consultei o seu catálogo de livros antigos (o qual não me pareceu conter novidades em relação a Olinda-Recife) e solicitei à USP informações sobre uma possível inscrição ou matrícula de Maia Ferreira, ou de estudantes angolanos, como referi. A resposta foi negativa: José da Silva Maia Ferreira não consta dos arquivos da Faculdade de Direito de São Paulo, nem me mencionaram nenhum angolano matriculado nas primeiras três décadas da Faculdade. Na Bahia concentravam-se estudos ligados à Medicina (e Farmácia), como também já disse. O irmão mais novo de Maia Ferreira, Luís de Queirós (nascido já na capital carioca), formou-se em Medicina, mas no Rio de Janeiro, onde morava a família, tornando-se depois professor catedrático de História Universal no Colégio Pedro II, aliás autor de um famoso e muito recomendado manual, Lições de História do Brazil. No Rio de Janeiro, que era também a capital cultural do país, tínhamos esses estudos e outros ainda, como o criado pelo “Decreto de 12-10-1820, que organizou a Real Academia de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitetura Civil, depois convertida em “Academia das Artes.”

Por seu turno, os Estudos Jurídicos de Olinda – mais tarde Faculdade de Direito do Recife – deram lugar a uma Escola que o foi também de Filosofia e de Poesia, não só jurídica. No Recife preocupavam-se principalmente com a teoria, em formar doutrinadores que iriam trazer maiores contribuições para a órbita jurídica – ao passo que São Paulo formava futuros governantes e tinha, portanto, um carácter mais prático e mais obediente. Por isso, do Recife partia todo um movimento de autocelebração que exaltava “a criação de um centro intelectual, produtor de idéias autônomas”. Como se disse em outro lugar, lá surgiram grandes correntes filosóficas, voltadas não só a ciências jurídicas, mas também às letras, artes e política, tendo grandes nomes de destaque no cenário artístico, jurídico e político do país. Era isto mesmo que me interessava, porque suportava tal ambiente uma bibliografia própria, adequada, mais próxima da circulação de ideias e de literatura teórica, política e poética fervilhante, curiosa, ávida de novidades, irradiante relativamente a transmissões culturais que atingiam Luanda e Benguela. E tudo isso, mais importante ainda para mim, numa região cultural de fronteira entre mais do que uma tradição e no porto brasileiro que maior percentagem de tráfico e tráfego mantinha com Angola – depois do Rio de Janeiro, calculo.

O conhecimento dos livros que circulavam no Recife, complementado com os estudos que há sobre a circulação de livros no Rio de Janeiro na mesma época, facultava-me, portanto, muitas informações úteis. E não se pense que só as que derivam do citado acima. Por exemplo: como estava organizado e funcionava o mercado do livro naquelas paragens tropicais? Exemplo mais importante ainda para o meu objetivo: o que lia, na altura, um aluno do Curso Jurídico, ou um curioso das literaturas, ou mesmo um aluno do Liceu Pernambucano?

Estas perguntas são importantes para estudar o ambiente literário em que se deu a emergência editorial da literatura angolana. São importantes, principalmente, porque pessoas muito próximas de José da Silva Maia Ferreira, o nosso primeiro poeta a publicar um livro, e o próprio Arsénio de Carpo (outro que ainda fez um livro de poemas) viveram no Recife. No caso dos primos de Maia Ferreira, estudaram no Curso Jurídico e, portanto, abasteceram-se também de bibliografia ali, que levaram depois, em parte, para o Rio e que parentes seus poderão ter levado para Luanda ou Benguela, a par de mais viajantes. Os dados citados por Helena Moreno e acima referidos indicam-nos que 93,6% dos navios negreiros entrados no porto do Recife, entre 1811 e 1830, vinham de Angola (Moreno, 2014 p. 44). Isso confirma que o Recife constituiu nesta época, em várias dimensões da vida social, uma ligação tal com Angola que podemos dizer que o que fosse marcante no Recife chegava de certeza a Luanda e Benguela e seria, tendencialmente, marcante nestas nossas paragens. Por tabela, os dados relativos a leituras na zona de Recife-Olinda nos revelariam leituras potencialmente feitas em Angola, por angolenses ou residentes, nesse tempo.




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